sexta-feira, 20 de outubro de 2023
Cinema Orly
domingo, 3 de setembro de 2023
Antes Que Eu Me Esqueça
Tony Bennett em seu show "One last time", em 2021, chamou Lady Gaga para dividir o palco em uma canção, porém o que ocorreu ali foi uma verdadeira lembrança do nome dela. Ela iria participar, mas para ele, diagnosticado com Alzheimer, naquele pequeno instante, a memória foi épica.
Tony Bennett é mais uma pessoa, dentre milhares, que foi diagnosticada com Alzheimer. Seu vinil faz parte do cenário do espetáculo "Antes Que Eu Me Esqueça". Com certeza, coisa de caso pensado. Há, sem dúvida, um trabalho de pesquisa intenso que se traduz num texto que induz o espectador à reflexão da importância da memória na vida de cada um, da importância do não desperdício do tempo de lucidez, da possibilidade de se viver terrivelmente sem identidade, sem autoreconhecimento. A orientação dramatúrgica, muito bem sucedida, é de Karen Acioly.O texto de Mariana Pantaleão e Matheus Rodrigues apresenta um músico que sofre um acidente e é diagnosticado com Alzheimer. Primeiro, é importante destacar a escolha de um músico como personagem, já que todos sabemos que este tem como consequência de seu ofício desenvolver a matemática, bem como a contagem do tempo. A ausência de memória neste caso torna ainda mais instigante o desenrolar da trama.
Walter, um músico que vive solitariamente a progressão da doença nos ensina como "uma massa rosa de um quilo e meio" pode nos fazer tanta falta e causar tanta dor. O monólogo tem um início impactante, o personagem vai se perdendo ao longo de duas ou três frases repetidas à exaustão. Com o desenrolar da trama, percebe-se quem é aquela pessoa, seu passado, suas referências afetivas, sua luta diária para reforçar o que ainda lhe resta de memória, seja simplesmente a hora exata de tomar um remédio, seja um estímulo musical, sejam cartas lidas anos depois de terem sido enviadas. A dramaturgia envolve as reflexões do personagem em questionamentos diretos ao espectador. Por que só depois , no fim de tarde? Por que só começar a viver depois disso, após aquilo... Não há como deixar de ter com o espectador uma conversa ao pé do ouvido porque a maioria de nós faz exatamente isto. Ao contrário do que pode parecer, o texto não busca compadecimento, busca reflexão e por isso talvez em muitas sequências o desenvolvimento é interrompido por outra nova proposta de reflexão.
A direção forte de Mariana Pantaleão juntamente com a interpretação do ator Renato Peres complementam o que pareceria algo puramente cerebral com muita emoção. A começar pela direção de ator, claramente há um trabalho intenso buscando extrair o cerne da questão, a memória. E neste aspecto, a diretora demonstra uma aptidão que resulta em cenas de intensa profundidade. Há uma proposta cênica muito bem elaborada, ora suave como nos instantes poéticos através da memória familiar do personagem bailando com um cabideiro, ora através da música que perpassa muitas cenas, mas também há a dureza da realidade desmemoriada desenvolvida através das projeções, inclusive da experiência sensorial provocada por "Um Cão Andaluz" , de Luis Buñuel, com roteiro compartilhado com Salvador Dalí, surgido através de sonhos de ambos. No texto há uma fala dita pelo personagem do próprio Luis Buñuel: "É preciso perder a memória mesmo das pequenas coisas, para que percebamos que a memória faz a nossa vida. Vida sem memória não é vida (...). Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação. Sem ela somos nada (...) e só posso esperar pela amnésia final". – Citação de Buñuel pelo neurologista e escritor inglês Oliver Sacks.
A direção de Mariana Pantaleão não deixa em nenhum momento o ator sem chão como se vê em muitos monólogos. Há, inclusive, um cuidado na direção de movimento de Amanda Laversveiler. Há um arcabouço pensado para impactar, conduzir e tocar o espectador. O resultado não poderia ser melhor. Direção lindamente conduzida e, na prátinca, muito inspirada, inteligente e criativa.
Renato Peres é um ator versátil. A começar pela construção do personagem. Não houve a opção por um caminho fácil, o a comiseração. Houve sim o compromisso com a integridade de comunicar um tema tão delicado de maneira séria. Seu personagem atinge diretamente a plateia com sua atuação que busca profundamente a essência dos portadores de Alzheimer. Vê-se ali a confusão, o esquecimento, a agressividade, a negação, a dependência, a emoção brotando quando o personagem escuta um vinil herdado do pai. Esta interpretação mereceria mil palavras que expressassem a perfeita modulação da voz, o trabalho corporal, a incapacidade cada vez mais acentuada, no tempo certo, da ausência. Quem tem ou teve alguma pessoa conhecida com esta doença sabe muito bem identificar o passo a passo até o silêncio e isto o ator vai nos revelando ao longo do espetáculo de forma contundente. O ator encarna um personagem muito difícil esbanjando maturidade e talento. Walter, de Renato Peres, existe e vive agora no seio de muitas famílias. Esta interpretação é para ser vista e revista muitas vezes, pois possui muitas nuances.
O cenário de Lina Da Hora é perfeito porque contém todas as referências do personagem. Um cenário funcional e cativante. Vê-se ali memórias em forma de objetos. Objetos dos quais muitos espectadores também têm memória.
A iluminação de Anna Padilha ajuda demais a construir as cenas, digo, o âmago das cenas, suas essências.
A direção musical de Raphael Muniz consegue traduzir as memórias do personagem músico e apresenta uma trilha sonora original emocionante.
Por fim, vale destacar que estamos no mês da conscientização do Alzheimer. É importante e um alento saber que as pesquisas têm avançado. Quem dera tia Nana, tia Coca, tio Plácido estivessem no tempo de agora. Minhas tias e tio, Tony Bennett, alguns célebres pintores, Walter e tantos outros. Por isso, não deixe para depois o que pode fazer já, assista "Antes Que Eu Me Esqueça" o mais breve possível, um espetáculo necessário e profundamente solidário.
SERVIÇO
Local: Teatro Ruth de Souza (Centro Cultural Municipal Glória Maria, antigo Parque das Ruínas)
Endereço: Rua Murtinho Nobre, Nº 169 – Santa Teresa
Temporada: de 02 a 24 de setembro (sábados e domingos)
Horário: 15h
Ingressos: R$ 30 (Inteira) e R$ 15 (Meia-entrada)
Link para compra: https://riocultura.
Duração: 60 minutos
Classificação: 12 anos (menores de 18 anos acompanhados de um responsável)
Gênero: Drama
Lotação: 75 lugares
sábado, 10 de junho de 2023
Ícaro And The Black Stars
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
“Acredito, e já o disse muitas vezes, que não deve o sapateiro ir além do sapato. Não creio em versatilidade. Recorro ao sapateiro quando quero sapatos e não ideias. Creio que o governo deve caber àqueles que sabem, e os outros devem, para seu próprio bem, seguir suas recomendações, tal como seguem as do médico." Claro que Sócrates se referia a conceder o leme àqueles que sabem navegar, segundo as pesquisas feitas por mais de 10 anos do autor do livro. Porém, que não se confunda que democracia e falta de dignidade na política são aliadas, ao contrário, é o que deve ser alijado.
Na obra do espanhol Ignasi Vidal nos deparamos com o questionamento sobre a dignidade na política, em um momento de extrema importância para nosso país, através de dois personagens que começaram juntos e dão sustentação a um grande partido político . Um deles, Francisco, lança-se na convenção do partido às eleições presidenciais como candidato da mudança, enquanto o outro, Alex, tem ambições de ser vice. Tudo parece, a princípio, uma reunião entre amigos no escritório do partido, mas se revelará aos poucos bem diferente de algo amistoso e, sem dar spoiler, o resultado caminha para um desfecho impactante e abjeto.
A tradução de Daniel Dias da Silva, exímio tradutor da língua espanhola, cria uma identificação imediata com o espectador. Vai conduzindo o texto original no tempo certo, dando ao espectador em pequenos goles a compreensão da dimensão do texto.
A direção também a cargo de Daniel Dias da Silva coloca um antagonismo na conduta dos personagens através de marcações contrapostas. Como num jogo, cada qual ocupando o espaço cênico diametralmente oposto ao do outro e isto confere ao embate uma linguagem simbólica entre o certo e o errado, mas sempre deixando uma nesga de dúvida até que ponto o valor, o merecimento, a elevação de fato existem naqueles personagens. O diretor propõe uma arena onde o espectador assiste pasmo aos "gladiadores". Direção primorosa e inventiva a todo instante, inclusive na solução dada à passagem de tempo.
Os atores Thelmo Fernandes e Claudio Gabriel, comemorando trinta anos de amizade com este espetáculo, expõem uma sintonia arrebatadora. Thelmo Fernandes interpreta Francisco a partir de sutilezas, de pequenos gestos, da voz mansa, porém em determinados momentos imperiosa, tudo no tempo certo de seu personagem. Ele traduz com perfeição o mistério que paira sob aquele encontro.
Claudio Gabriel, como Alex, possui uma inquietação, um ritmo acelerado interno através do tom de voz, dos gestos largos. O ator trabalha bem as fases do personagem, da aflição à ascensão, tudo com muita veracidade. Dois mestres na arte da interpretação. Vale destacar que os silêncios de cada um também são reveladores.
Quando o espectador ingressa na sala de espetáculo encontra um cenário enigmático, com casas de tabuleiro no chão e figuras geométricas que não se encaixam umas nas outras, mas que estão a querer mostrar que apesar de diferentes em cores e disposição no palco revelam sua igualdade. Este é o lindo trabalho de Natália Lana. A única ressalva diz respeito à altura das torres de pastas ou arquivos nas laterais, apenas porque em certos momentos atrapalham a visão do espectador. Mas, sem dúvida, o cenário é um dos pontos altos do espetáculo, bem como a iluminação enigmática de Vilmar Olos, trazendo clímax quando necessário.
A produção é impecável. Tudo de altíssima qualidade. Um espetáculo que nos faz refletir.
"Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são." (William Shakespeare). Simples assim.
Serviço:
Temporada: Até 18 de dezembro. Quinta-feira a domingo, às 20h.
Ingressos: R$ 7,50( Associado do Sesc ), R$ 15,00 ( meia-entrada ), R$ 30,00 (Inteira)
Local: Sesc Copacabana- Rua Domingos Ferreira, 160 - Copacabana
Informações: 2547-0156
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 90 minutos
ResponderEncaminhar
sábado, 22 de outubro de 2022
A Última Ata
ResponderEncaminhar |
quinta-feira, 11 de novembro de 2021
Baile Partimcundum
Inspirado nas canções do disco "Partimpim 2", de Adriana Calcanhotto, e dando continuidade ao primeiro espetáculo "Lá Dentro Tem Coisa” (2017), idealizado pelo ator e empreendedor cultural Felipe Heráclito Lima, a menina Isabel agora tem 12 anos , ama os livros, tem duas mães e se apaixona pelo personagem do livro, o príncipe preto Alexandre, que está para ser coroado em seu reino. Só por aí já se vê um espetáculo diferenciado e tão necessário no contexto de aversões e desrespeito às diferenças em que o nosso país foi imerso.
A dramaturgia é de Adriana Falcão e Matheus Torreão. O amor pelos livros faz com que a menina Isabel entre na história com o intuito de encontrar o príncipe Alexandre que havia desaparecido com a suspeita de ter sido raptado pelo Leão. O reino tem personagens adoráveis como o menestrel, que os editores o transformam em narrador, mas que é muito mais que isso, Aristocrates ,o fiel escudeiro do príncipe, que na verdade é um sábio cavalo, a duquesa Alface, o Leão, o príncipe Alexandre cujo pai foi um raio, mas que é inseguro e misterioso, isto sem falar em Isabel uma menina cheia de vida e posicionamento firme, uma personagem que ilumina tudo por onde passa, deixando preocupadas suas mães. A linguagem do texto utiliza a rima de maneira engraçada no menestrel e os diálogos entre os demais personagens são construtivos e criativos. Um texto delicioso, que desperta interesse do início ao fim.
A direção de Renato Linhares está toda calcada no livro que a menina lê e as soluções cênicas são mágicas. O espectador é levado a se transportar de fora para dentro da história, contada de forma a valorizar a literatura e a imaginação. Há uma comunhão com a direção audiovisual de Murilo Alvesso executada com maestria. O espectador passeia por cenários diversos, até mesmo no fundo do poço. A ideia de uma brecha no livro que faz a menina ingressar nele e todos nós é genial porque não serve somente a isto, mas principalmente pela mensagem subliminar que traz. A direção é responsável por momentos memoráveis.
O elenco de atores-cantores composto por Caju Bezerra, Felipe Rocha, Léo Bahia, Lu Vieira, Thaís Belchior e Thiago Catarino está bem entrosado e maravilhoso! Cantam, dançam, tocam instrumentos, tendo uma base por trás, interpretam com muita naturalidade e dão vida aos personagens de tal forma apropriados que até mesmo após o espetáculo muitas cenas de cada um deles ficam saltando na memória. Todos se destacam, cada um tem aquela cena inesquecível, não há como deixar de apontar a excelência do elenco.
O cenário assinado por Bia Junqueira é deslumbrante e todo ele feito com diversos tipos de papel. Aqui, mais uma vez, nota-se a valorização à literatura. Como disse anteriormente, há diversos cenários e todos muito bem elaborados, criativos e funcionais.
O figurino de Karen Brusttolin aposta no surrealismo e são originais de roupas usadas por personagens do cinema das décadas de 60 a 80. Extremamente impactantes, coloridos e vibrantes.
A iluminação de Bernardo Lorga faz toda a diferença. Funciona quase como um personagem a mais tão casada está com as cenas, dando o clima perfeito ao acabamento destas.
A preciosa direção musical é de Felipe Habib e Maíra Freitas. As músicas "Alexandre”, “Ringtone de amor”, “Alface”, “O homem deu nome a todos os animais”, “Menina, menino”, “O trenzinho do caipira” e “Baile Partimcundum” dispensam comentários , têm letras e arranjos contagiantes e festivos.
O Teatro precisou se adaptar a outras linguagens e aqui houve um casamento perfeito com o audiovisual. É o Teatro encenado, mas transposto pela câmera, inclusive com efeitos de edição. Um trabalho meticuloso em todos os elementos e necessário por dizer a que veio. Um espetáculo para ser visto e revisto muitas vezes, como fazemos com aqueles livros que adoramos.
SERVIÇO
Espetáculo on-line: “Baile Partimcundum”.
Temporada: De 02/10 a 28/11. Dias e horários: Sábados e domingos, às 17h.
Local: Exibição via plataforma Sympla
Ingressos: Sympla – R$ 20 (inteira) | R$ 10 (meia) – www.sympla.com.br/produtor/sevenxproduesartsticas
Duração: 60 min. Classificação: Livre. Gênero: musical infantojuvenil.
segunda-feira, 25 de outubro de 2021
A Menina Akili E Seu Tambor Falante, O Musical
A mãe África e toda a contribuição que deu ao resto do mundo através da música, da dança, da força contida na religiosidade, além da resistência de seu povo aos maus tratos recebidos é fonte inesgotável de inspiração.
O espetáculo através de uma menina e seu tambor falante, traz de maneira leve e divertida valores como o respeito à ancestralidade e acentua o empoderamento tão necessário. A título de curiosidade, estudos indicam que o homem, em sua origem, pela região em que habitava era preto, todos eram pretos e somente através das migrações e condições climáticas diversas foram embranquecendo, então partindo deste princípio, a origem de todos os povos é preta.
“A menina Akili e seu tambor falante, o musical”, roteirizado e protagonizado pela atriz Verônica Bonfim, tem direção de Rodrigo França e Valéria Monã na co-direção.
O texto, extraído do livro homônimo lançado em 2016 pela Editora Nandyala Livros, apresenta-nos Akili, uma criança que no dia de seu aniversário se deparou com a missão de se tornar Griote, uma contadora de histórias, guardiã da tradição oral do seu povo e juntamente com seu tambor falante Aláfia, vive aventuras até chegar ao que procura. O texto é rico em referências africanas, revelando uma cultura formada por extrema musicalidade, pluralidade e religiosidade. Um texto que desperta interesse em cada passagem, muito bem construído, com uma linguagem que atinge o coração das crianças e também de adultos. O tambor Aláfia, tocado por uma mulher, pontua a partida e a chegada da trajetória da menina e simboliza a vontade da mulher de estar onde bem quiser, inclusive tocando tambor.
A direção optou por colocar aparentes as instrumentistas, que também interpretam, em cena. A concepção é muito clara dada a importância delas para o desenvolvimento do espetáculo , mas por outro lado, em relação às cenas da menina Akili há pouco espaço no palco. A direção traz marcas criativas, explorando a expressão corporal, bem como criando as atmosferas adequadas.
As músicas são solares como é a própria menina. Excelente a direção musical de Cláudia Elizeu e co-direção do Grupo Dembaia. Há referências da capoeira, do maracatu, instrumentos como o pau de chuva, tambor, pandeiro, tudo harmonioso e envolvente.
A interpretação de Verônica Bonfim é cheia de vida, é carismática, sua Akili é uma criança encantadora, alegre, brilhante. Ótima atuação que opta por buscar o interior da personagem e não fazer uma construção de fora para dentro o que poderia acarretar um estereótipo, mas ao contrário, a atriz concebeu sua personagem conferindo qualidade vocal, corporal e emocional. Um trabalho admirável. É importante o destaque para a personagem aranha, com humor e expressão corporal perfeita, a atuação é um ponto positivo do espetáculo.
A iluminação do meio para o fim do espetáculo traz as cores necessárias à riqueza da história. Através dela poderia ter sido resolvida a questão do pouco espaço às cenas no palco.
O espetáculo cabe no coração de todos, pois aquece a cada um de nós, devolvendo o brilho da vida através da pureza e calor humano.
SERVIÇO:
ESTREIA
Local: https://www.youtube.com/c/OiFuturo
Data: 16 de outubro, sábado
Hora: 16h
TEMPORADA ONLINE
O espetáculo será exibido no Centro Cultural Oi Futuro e no Youtube do Oi Futuro
Data: 17 de outubro a 21 de novembro, sábado e domingo
Oi Futuro – Rua Dois de Dezembro, 63 - Flamengo
Hora: 14h e 16h
Agendamento: https://oifuturo.org.br/
Youtube Oi Futuro - https://www.youtube.com/c/OiFuturo
Hora: 16h
segunda-feira, 11 de outubro de 2021
Era Medeia
Repugnante e excepcional ao expressar o desmerecimento, o desapreço, a menos valia pela condição feminina.
Vi o espetáculo on-line, justamente, na
semana em que o governo desconsiderando a fragilidade das mais carentes em
relação aos absorventes femininos vetou este item absolutamente necessário para
a vida de muitas mulheres. Sem comentários.
"Era Medeia" retrata um processo de
ensaio, expresso via live, do espetáculo Medeia, de Eurípedes.
Original em todos os aspectos por trazer para
o público o processo do ator, a intermediação do diretor e a live, muito vivida
nesses dias pandêmicos. Até aí tudo parece bem natural, mas há
cavernas a serem exploradas nessa tríade.
A personagem da atriz, ex-esposa do
personagem diretor que a abusa emocionalmente, traz seu domínio pela condição que
ocupa como homem. Não é à toa que as mulheres estão exaltando o
empoderamento feminino, abusadas milenarmente quem sabe está mais do que na
hora de falarem tetê-à-tetê?
Começa o espetáculo com a atriz Isabelle
Nassar afundada em sua própria roupa, quase enterrada. Ótimo e diz muito o
figurino de Tiago Ribeiro. Depois o que se vê é o ex-marido e diretor do
espetáculo a expondo a situações quase cruéis e desmoralizantes. Até o ponto de
propor que joguem bolas quando não satisfeitos com o desempenho da atriz.
Medeia, a tragédia encenada, traída e abandonada
por seu grande amor Jasão é um ícone, ainda que cruel e devastadora. Essa
mulher, através dessa traição matou os filhos e deu de comer a seu ex-esposo.
Nada há de mais desumano nessa conduta, mas a personagem atrai porque não deu
causa à tragédia e como diz o texto::" Sabem os deuses quem foi o primeiro
ator desse desastre".
O texto, direção e atuação de Eduardo
Hoffmann, com supervisão de Cesar Augusto, é uma crítica à condição feminina
imposta pelo patriarcado. Afinal, por que os homens se sentem tão superiores? A
força, vide Golias, não é a maior das virtudes. Além do mais, o texto faz uma
crítica à adoração pelo reality show. Por que se adora um programa que se diz
reality e não mais um verdadeiro processo da arte? A verdadeira experiência se
encontra no processo de criação como era sabido e hoje esquecido.
A direção coloca a figura masculina em
primeiro plano, tendo a atriz sempre atrás e, muitas vezes, desfocada, para
acentuar o referido domínio. Muito pertinente e clara a mensagem.
Vale muito a pena destacar a interpretação
dos atores. Isabelle Nassar inteira na atuação, desde o início, tem a
personagem nas mãos. Atua com sua voz no início baixa propositadamente e vai a
elevando até o ponto do xeque mate. Em suas entonações não se vê o óbvio. Seus
arroubos tão esperados calam fortes, tais como:
"Duvido que você faça com um homem,
levaria um murro na cara."
"Cala a boca! Isso é desrespeito".
Uma interpretação estudada, aprimorada e
convertida em belas sequências. O seu par, o ator Eduardo Hoffmann consegue
imprimir muita veracidade ao personagem. Quanto detestamos esse ser desprezível
que ele representa. Sua falta de sensibilidade que disfarça suas mágoas é bem
expressa. Os atores são muito responsáveis pelo grande espetáculo.
Iluminação pungente de Renato Machado.
A atmosfera musical de João Mello e Gabriel
Reis acrescenta muito ao espetáculo.
Era Medeia é imperdível. Você vai se ver ali. Tudo feito com esmero e perfeição. Se jogue nesta viagem da Grécia antiga
aos tempos nefastos atuais.
Serviço:
Era Medeia
Até 18 de outubro
No canal do YouTube Firjan Sesi
Pode ser acessado a qualquer hora.
domingo, 3 de outubro de 2021
Gaivotas
Assistindo "Gaivotas" é quase impossível não nos remeter à influência de Eugène Ionesco na obra do autor Matéi Visniec. Disse ele certa vez:
“Depois de ler as peças de
Ionesco, nunca mais tive medo na vida. Mais do que qualquer sistema filosófico
ou livro de sabedoria, foi Ionesco que me ajudou a compreender o homem e suas
contradições, a alma humana, a vida e o mundo”. A solidão dos personagens, a
quase não existência, quase transformados em bonecos do cotidiano expressam a
insignificância humana bem presentes no Teatro de Ionesco. É bom destacar que a
adaptação de Fernando Philbert nos reflete e nos faz pensar, pois já estamos em
completo absurdo na própria vida real.
"Gaivotas", texto
de Matéi Visniec que, fugindo da ditadura de Ceausescu na Romênia se refugiou
na França, mostra esta solidão. Os personagens buscando o amor só encontram
barreiras criadas por si mesmos ou pelas situações de vida. Dois escritores e
uma atriz, sem plateia, numa realidade coberta de gelo, metáfora muito
pertinente, nada mais produzem, sem espectadores, num triângulo amoroso com um
desfecho inesperado.
A adaptação de Fernando
Philbert introduz a realidade pandêmica de teatros fechando, da ausência de
público, da realidade nua e crua que o autor sempre esboçou em seus
questionamentos sobre o fim do Teatro. O teatro um dia deixará de existir? Não
creio.
O texto, inspirado em
"A Gaivota" de Thekhov, retrata os conflitos das relações estabelecidas entre Konstantin, um escritor
fracassado e seu amor pela atriz Nina que fora casada com outro homem chamado Boris. Este, por sua
vez, teve um relacionamento com a mãe de Konstantin. Esse reencontro dos personagens, após 15
anos, proposto por Visniec, expõe ódios, frustrações, solidão daquelas de
tremer todo o corpo envolto em gelo, literalmente, porém com uma mensagem de
esperança.
A adaptação coloca o
espectador bem próximo aos personagens, pois mescla seus rumos com a situação
atual.
A direção de Fernando
Philbert de teatro-metragem tem a linguagem adequada ao vídeo, há o plano geral, mas também há o ponto de
vista do ator através da câmera subjetiva , além de justaposições, tornando
dinâmico o espetáculo, explorando as tensões , trazendo belas imagens.
No que concerne aos atores,
é importante destacar o trabalho de Paulo Giardini, interpretando Boris. Há
nuances e coloridos em seu texto, bem como na composição do personagem. Sua entrada
traz uma mudança necessária ao desenvolvimento da trama. A atriz e produtora Bibiana
Rozenbaum tem um desempenho emocional, conferindo extrema verdade à sua
personagem Nina. A cena em que pisa no palco, um simples pano branco
representando o Teatro, é um ponto alto. O desempenho do ator que faz
Konstantin, Savio Moll, começa em alto nível e, por isso mesmo, incompreensível
seu desenrolar tão pouco carismático. O desempenho do ator se torna ao longo do
espetáculo, para o espectador, frio e distanciado.
O cenário de Natália Lana é perfeito.
Em meio a tanto gelo criado de forma muito criativa há cadeiras de uma plateia
muito reais. Esse detalhe torna tudo muito mais próximo do espectador brasileiro.
A plateia com suas cadeiras daquelas de
madeira, antigas, trazem um recorte do que vivemos antes de tudo, antes do
nada.
O figurino de Marieta Spada
com fidelidade nos transporta aos personagens daquele tempo e lugar.
A música original de Marcelo
Alonso Neves é envolvente e acentua todas as atmosferas.
Recomendo o espetáculo por
acreditar que nos faz pensar no tempo presente. O Teatro tem o dom de nos
espelhar. Alguns percebem, outros não, mas estamos ali naquelas gaivotas que
não conseguem, por enquanto, alçar voos.
Serviço:
Sexta a domingo até 10 de outubro, às 20h.
YouTube Sesc- RJ
domingo, 19 de setembro de 2021
Escombros
Objetos soltos em escombros vão sendo resgatados e a partir deles passa a existir uma cena. Em meio à devastação daquele universo e de relações deterioradas, todos os personagens enlameados chafurdam no caos.
O espetáculo do Grupo Sobrevento, que
está comemorando 30 anos de existência,
não poderia ser mais contundente, principalmente porque identificamos
naquelas ruínas, naqueles cacos, naquela desordem e na firmeza dos personagens
em se manterem em pé uma identificação
imediata. O Sobrevento nos espelha, pois se fôssemos traduzir em imagens o
mundo em que vivemos, encontraríamos
nossos fragmentos no espetáculo.
A dramaturgia é de autoria de Sandra Vargas. O
espetáculo criado a partir do Teatro de objetos, linguagem que o grupo pesquisa
há mais de uma década e com a colaboração das companhias francesas Théatrê de
Cuisine e Théatrenciel, parte de uma ideia simbólica, mas perfeitamente demostrada,
seja através de um casal que precisa de ar para continuar sua falida rotina,
seja através de outro onde não cabe nem mais um diálogo tête-à-tetê, ou ainda daquele que carrega suas dores
retratadas em pedras. Enfim, os diálogos são diretos e não deixam dúvidas. As
ruínas estão por toda parte , bem como em cada um dos personagens. A
dramaturgia é sólida e criativa. Responsável direta por nos deixar
boquiabertos. " A destruição do nosso entorno, a ruína de nossas
construções, de nossa casa, de nossos sonhos termina por contaminar as nossas
relações com os outros e, por fim, entranha-se em cada um de nós, penetrando-nos os ossos e a alma", diz
Sandra Vargas.
A direção também de Sandra Vargas e
de Luiz André Cherubini é visualmente muito bonita! Apesar da destruição, a
escolha pela lama no cenário e nos próprios personagens tem o condão de fazer
com que imediatamente o espectador faça a leitura correta do que vê e do que
está por vir. O espaço é muito bem aproveitado e os objetos, claro, são
personagens à parte, eles são o fio condutor das cenas. Tais como as cadeiras,
exploradas de todas as formas e possibilidades, as xícaras presentes em vários
momentos, fragmentos que representam uma casa, tudo na mais completa harmonia
cênica. Todas as intenções são perceptíveis. A direção dita o ritmo correto até
chegar ao ápice.
Os atores estão perfeitos, no tom que
a encenação exige, todos têm o momento apropriado para se destacarem. O elenco
é composto por Sandra Vargas, Luiz André Cherubini , Maurício Santana, Sueli
Andrade, Liana Yuri e Daniel Viana.
Os figurinos de João Pimenta são
adequadamente brancos. Falam por si, pois têm uma representação muito
importante naquele contexto de desolação.
A iluminação de Renato Machado é
forte, marcante e precisa.
A música de Arrigo Barnabé e a canção
de Geraldo Roca cantada por Márcio de Camillo tocam profundamente a alma do
espectador, além do tom crítico muito necessário neste momento.
Nem sempre gostamos da nossa imagem
vista no espelho, mas o que se vê em Escombros é de lavar a alma. Que belo
retrato do mundo atual!
Escombros
Até 03 de outubro de 2021
(sextas-feiras, sábados e domingos).
Horário: 20h
On-line
Espaço Sobrevento: Rua Coronel Albino
Bairão, 42 – Belenzinho (a duas quadras do Metrô Bresser – Moóca) – São Paulo
Para reservar seu ingresso virtual ,
envie um e-mail para info@sobrevento.com.br. É gratuito.
sábado, 11 de setembro de 2021
Sonhos De Uma Noite Com O Galpão
O Galpão, que teve sua origem no Teatro de rua , sempre se renovando ao longo de quarenta anos de existência, forte e exuberante, se faz presente nestes tempos de pandemia, da linguagem à distância.
Quem esteve e está em distanciamento sonha. Todos sonhamos. O sonho é a manifestação do inconsciente, dos entraves do dia-a-dia, dos desejos, das expectativas e também premonitórios porque somos todos radares.
O que fez Pedro Brício com tudo isto? Alquimia de sabores. Pedro Brício é um
dramaturgo potente. Fica muito clara a sua densidade e mergulho na pesquisa,
além da facilidade que possui em expressá-la. Há no seu olhar muita
sensibilidade.
A direção, neste momento, é algo como uma reinvenção. Sem contato, através de
lives, surgiu um jeito de adaptar a realidade consciente à arte. A arte sempre
é consciente. Sabe o que fazer, como fazer, porque fazer. Sua
dramaturgia se traduz na frase: " nós, agora, somos todas essas
pessoas". Sonhamos a vida inteira. De olhos abertos quando é fantasia e
neste momento, de olhos fechados quando o sonho é pesadelo. No sonho há um desejo ou
uma aversão. A dramaturgia de Pedro Brício traz as possibilidades,
imensas, enormes, do sonho nesta pandemia. Há crítica, afinal, ¨que época é essa
em que os idiotas conduzem os cegos?¨ Louvável neste momento.
Sua direção teatro metragem é dinâmica. Conduz a atmosferas de sonhos, sejam
os mais díspares numa unicidade pertinente causando interesse a todo instante.
Estes sonhos são traduzidos em imagens absolutamente palpáveis.
O Grupo Galpão é indiscutível. Cada qual com seu papel em atuações sem peso, com proposital naturalidade, porém, magistrais. Mostrando a trajetória ímpar
de um país do medo, do desassossego, do que não dorme horas a fio.
Imensas pausas para esse trabalho tão potente e marcante. Ficará nos idos da
história teatral como uma visão correta de como o brasileiro, quiçá o
mundo, sonhou nestes tempos. Um registro importante das nossas
angústias e em suas origens, voltando às ruas para saber, pesquisar e
fazer acontecer o que cada qual sonhou.
Um belíssimo trabalho! Pena não listar cada nome envolvido.
Você tem a chance de vê-los até 12 de setembro.
sábado, 28 de agosto de 2021
Em Nome Da Mãe