domingo, 3 de setembro de 2023

Antes Que Eu Me Esqueça

Foto: Victor Gustavo Almeida

Tony Bennett em seu show "One last time", em 2021, chamou Lady Gaga para dividir o palco em uma canção, porém o que ocorreu ali foi uma verdadeira lembrança do nome dela. Ela iria participar,  mas para ele, diagnosticado com Alzheimer, naquele pequeno instante, a memória foi épica.

Tony Bennett é mais uma pessoa, dentre milhares, que foi diagnosticada com Alzheimer. Seu vinil faz parte do cenário do espetáculo  "Antes Que Eu Me Esqueça". Com certeza, coisa de caso pensado. Há, sem dúvida,  um trabalho de pesquisa intenso que se traduz num texto que induz o espectador à reflexão da importância da memória na vida de cada um, da importância do não desperdício do tempo de lucidez, da possibilidade de se viver terrivelmente  sem identidade, sem autoreconhecimento. A orientação dramatúrgica, muito bem sucedida, é de Karen Acioly.

O texto de Mariana Pantaleão e Matheus Rodrigues apresenta um músico que sofre um acidente e é diagnosticado com Alzheimer. Primeiro, é importante destacar a escolha de um músico como personagem, já que todos sabemos que este tem como consequência de seu ofício desenvolver a matemática, bem como a contagem do tempo. A ausência de memória neste caso torna ainda mais instigante o desenrolar da trama.

Walter, um músico que vive solitariamente a progressão da doença nos ensina como "uma massa rosa de um quilo e meio" pode nos fazer tanta falta e causar tanta dor. O monólogo tem um início impactante, o personagem vai se perdendo ao longo de duas ou três frases repetidas à exaustão. Com o desenrolar da trama, percebe-se quem é aquela pessoa, seu passado, suas referências afetivas, sua luta diária para reforçar o que ainda lhe resta de memória, seja simplesmente a hora exata de tomar um remédio, seja um estímulo musical, sejam cartas lidas anos depois de terem sido enviadas. A dramaturgia envolve as reflexões do personagem em questionamentos diretos ao espectador. Por que só depois , no fim de tarde? Por que só começar a viver depois disso, após aquilo... Não há como deixar de ter com o espectador uma conversa ao pé do ouvido porque a maioria de nós faz exatamente isto. Ao contrário do que pode parecer, o texto não busca compadecimento, busca reflexão e  por isso talvez em muitas sequências o desenvolvimento é interrompido por outra nova proposta de reflexão.

A direção forte de Mariana Pantaleão juntamente com a interpretação do ator Renato Peres complementam o que pareceria algo puramente cerebral com muita emoção. A começar pela direção de ator, claramente há um trabalho intenso buscando extrair o cerne da questão, a memória. E neste aspecto, a diretora demonstra uma aptidão que resulta em cenas de intensa profundidade. Há uma proposta cênica muito bem elaborada, ora suave como nos instantes poéticos através da memória familiar do personagem bailando com um cabideiro, ora através da música que perpassa muitas cenas, mas também há a dureza da realidade desmemoriada desenvolvida através das projeções, inclusive da experiência sensorial provocada por "Um Cão Andaluz" , de Luis Buñuel, com roteiro compartilhado com Salvador Dalí, surgido através de sonhos de ambos. No texto há  uma fala dita pelo personagem do próprio Luis Buñuel: "É preciso perder a memória mesmo das pequenas coisas, para que percebamos que a memória faz a nossa vida. Vida sem memória não é vida (...). Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação. Sem ela somos nada (...) e só posso esperar pela amnésia final". – Citação de Buñuel pelo neurologista e escritor inglês Oliver Sacks.

A direção de Mariana Pantaleão não deixa em nenhum momento o ator sem chão como se vê em muitos monólogos. Há, inclusive, um cuidado na direção de movimento de Amanda Laversveiler. Há um arcabouço pensado para impactar, conduzir e tocar o espectador. O resultado não poderia ser melhor. Direção lindamente conduzida e, na prátinca, muito inspirada, inteligente e criativa.

Renato Peres é um ator versátil. A começar pela construção do personagem. Não houve a opção por um caminho fácil, o a comiseração. Houve sim o compromisso com a integridade de comunicar um tema tão delicado de maneira séria. Seu personagem atinge diretamente a plateia com sua atuação que busca profundamente a essência dos portadores de Alzheimer. Vê-se ali a confusão, o esquecimento, a agressividade, a negação, a dependência, a emoção brotando quando o personagem escuta um vinil herdado do pai. Esta interpretação mereceria mil palavras que expressassem a perfeita modulação da voz, o trabalho corporal, a incapacidade cada vez mais acentuada, no tempo certo, da ausência. Quem tem ou teve alguma pessoa conhecida com esta doença sabe muito bem identificar o passo a passo até o silêncio e isto o ator vai nos revelando ao longo do espetáculo de forma contundente. O ator encarna um personagem muito difícil esbanjando maturidade e talento. Walter, de Renato Peres, existe e vive agora no seio de muitas famílias. Esta interpretação é para ser vista e revista muitas vezes, pois possui muitas nuances.

O cenário de Lina Da Hora é perfeito porque contém todas as referências do personagem. Um cenário funcional e cativante. Vê-se ali memórias em forma de objetos. Objetos dos quais muitos espectadores também têm memória.

A iluminação de Anna Padilha ajuda demais a construir as cenas, digo, o âmago das cenas, suas essências.

A direção musical de Raphael Muniz consegue traduzir as memórias do personagem músico e apresenta uma trilha sonora original emocionante.

Por fim, vale destacar que estamos no mês da conscientização do Alzheimer. É importante e um alento saber que as pesquisas têm avançado. Quem dera tia Nana, tia Coca, tio Plácido estivessem no tempo de agora. Minhas tias e tio, Tony Bennett, alguns célebres pintores, Walter e tantos outros. Por isso, não deixe para depois o que pode fazer já, assista "Antes Que Eu Me Esqueça" o mais breve possível, um espetáculo necessário e profundamente solidário.

SERVIÇO

Local: Teatro Ruth de Souza (Centro Cultural Municipal Glória Maria, antigo Parque das Ruínas)

Endereço: Rua Murtinho Nobre, Nº 169 – Santa Teresa

Temporada: de 02 a 24 de setembro (sábados e domingos)

Horário: 15h

Ingressos: R$ 30 (Inteira) e R$ 15 (Meia-entrada)

Link para compra:  https://riocultura.eleventickets.com/#!/evento/47ebaaea82bd5d84c3eb217a4173493671e6ad9a

Duração: 60 minutos

Classificação: 12 anos (menores de 18 anos acompanhados de um responsável)

Gênero: Drama

Lotação: 75 lugares

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