segunda-feira, 1 de setembro de 2025

(Um) Ensaio Sobre A Cegueira

 Crítica: (Um) Ensaio sobre a cegueira

 


"Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.", disse José Saramago sobre sua tão potente obra.

O espetáculo do Grupo Galpão, sob a direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, propõe uma vivência teatral, uma experiência que o público passa através de sensações, pensamentos e reflexões, de incômodos e perplexidade.

A cegueira existiu em vários grandes momentos da humanidade, o que nos tornou desumanos, nefastos, sujos, entregues à barbárie como estamos vivenciando agora através de ultras, extremos, falta de empatia e aceitação do outro, do diferente. O mundo é insensível quanto às migrações, gêneros, raça, taxacões, guerras, sobre territórios e povos.

Somos cegos ou nos tornamos novamente cegos. O tal do mal do leite nos olhos.

Para quem não leu o livro, o enredo trata de uma pandemia de cegueira que evolui para o caos da sociedade. Não enxergar quer dizer muita coisa. Por exemplo: celulares, telas e IA, tornam o pensamento improdutivo, quase inútil nos dias de hoje,  já não vislumbramos os outros e a nós mesmos. 

José Saramago ganhou o Nobel de literatura pelo conjunto da obra, em 1998, porém esse livro traz uma "visão" dolorosa do ser humano.

A dramaturgia e direção de Rodrigo Portella é impecável, a obra em si vai além de onde termina o espetáculo, mas este diz tudo e em nada diminui o ritmo do inevitável caos. Rodrigo Portella sempre traz direções sensíveis, contundentes, que tocam particularmente cada espectador. Sem dar spoiler, há cenas memoráveis, e colocar no palco pessoas comuns dá uma veracidade à difícil sensação de se estar perdido. As personagens foram muito bem escolhidas para o Grupo. A gente sai com a impressão de que não poderia ser diferente,  pois as interpretações estão perfeitas.

Não vi qualquer pessoa na plateia com interesse de sair, mesmo com 2 horas e meia de espetáculo, sem intervalo. Foi, de fato, um convite à imersão com um final absolutamente apoteótico! Só vivendo, só estando presente!

O Grupo Galpão não precisa de apresentação. Falam por si os 43 anos de existência e resistência. Amei a atuação de cada um dos atores. Naturalmente, se é que se pode dizer isso... Em especial, o médico, o ladrão, a única mulher que enxerga, a moça de óculos, a sargento, o homem religioso, a mulher dele, o motorista, a criança e me desculpem se não digo os nomes, pois trata-se do Grupo Galpão,  todos são extraordinários. 

Após luzes e sombras, música que, ao meu gosto, queria mais, também os silêncios, ritmos e paralisação, o real nos conduz a uma certeza: olhar o que nunca vemos, aquilo que passamos batidos, a rua, os sons, as relações próximas ou distantes, mas ainda assim importantes, significa vida! O espetáculo nos convida à loucura de só enxergarmos quando não mais estamos vendo.

Estamos vivendo isso agora,. É atemporal e imprescindível. 

Como saber o que não vemos? Assistam ao espetáculo! Só olhar em volta, bater palmas e cantar um grito de existência! 


Serviço: 


Temporada: Até  o dia 14 de setembro de 2025. De quarta a sexta, às 19h. Sábados e domingos,  às 17h.

Teatro Carlos Gomes, Centro.

Ingressos: 

Rio Cultura: ingressosriocultura.com.br. 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Virginia

 Critica: Virgínia 



Acredito que excelentes espetáculos retornam e retornam, no mínimo,  na lembrança de espectadores ou amantes do Teatro.

Fui assistir "Virginia" sem a obrigatoriedade de fazer a crítica.  Fui porque gosto de tudo que envolve a escritora, a atriz, o diretor, a paixão pela literatura. 

Virgínia Woolf escrevia com fluxo de consciência e daí saíram obras primas. Viveu seus terrores de infância,  seus delírios,  sua ausência de conexão humana, sua vasta vida internamente até a morte, em pleno desalento ante à  segunda grande guerra.

Vejam bem, esse espetáculo,  primeira incursão de Claudia Abreu pela dramaturgia, aliás,  diga-se que o texto é extremamente bem construído  e também por atuar em seu primeiro monólogo e foi visto por mais de 45.000 pessoas no Brasil, Portugal e no México.

Monólogos são como diz o nome palavras solo. E Claudia mergulhou no universo de Virgínia Woolf com tanta intensidade que a plateia vivencia grandes momentos entre sua vida e obra.

Muitos detalhes são pela maioria desconhecidos completamente o que torna o texto de uma complexidade instigante. Palmas!

A direção de Amir Haddad ingressa no universo de várias personagens e com um gesto, uma marcação,  uma mudança de luz nos faz ingressar também.  O diretor trabalhou a atriz para interpretar da maneira mais casual possível e isso nos aproxima da complexa personagem, engasgo de emoção,  lucidez x delírios,  realidade sufocante, tudo está ali presente. Palmas!

Claudia Abreu se destaca em sua geração de atores formados pelo Tablado de Maria Clara Machado. Assisti Orlando, assisti  muito antes Pluft, O Fantasminha e vi desde cedo uma atriz com absoluta entrega. É , mais que isso, diversa, múltipla,  profunda. Não busca a superficialidade das formas, busca o conteúdo.  Sua Virgínia traz essa profunda angústia e o extremo da grandiosidade da artista. Com emoção à flor da pele,  com total domínio do espaço cênico,  com gestos e bailados apropriados, mas principalmente,  com a essência de Virgínia,  a atriz nos faz experenciar  cada momento desse ícone da literatura em seu âmago. Palmas e palmas!

Temos vontade de ver mais e mais vezes para descobrir cada nuance da interpretação. Esperamos que o espetáculo retorne em breve, mas essa resenha visa retratar para plateias futuras a grandiosidade desse espetáculo. 

Não é preciso dizer que o figurino de Marcelo Olinto, a iluminação de Beto Bruel,  a direção de movimento de Marcia Rubin e a trilha sonora de Dany Roland são experiências fundamentais. Fundamentais. Palmas! 

Foi um dos melhores espetáculos que assisti há anos!

Fica aqui o convite para, se um dia voltar, não percam!

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Crítica: Simplesmente eu, Clarice Lispector




"Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome".  Clarice sendo Clarice.
Um convite à maestria do Teatro e da Literatura se encontra no espetáculo "Simplesmente eu, Clarice Lispector ", com extrema elegância somos invadidos pela maravilhosa e vasta escritora Clarice Lispector através da impecável atuação de Beth Goulart. Absolutamente impecável!
Quem nunca leu Clarice fica instigado a conhecer sua vida e sua obra, quem já leu ou teve essa experiência tem vontade de correr para suas verdades profundas novamente.
O que dizer de um espetáculo que fez tanto sucesso, que foi visto por mais de 1 milhão de pessoas, em mais de 280 cidades e que retorna depois de dez anos, muito pulsante, vibrante, delicado, pura arte que convida ao amor, ao próximo, à busca de Deus, do Eu?
O espetáculo foi moldado em entrevistas, cartas e 4 personagens das obras da autora: Joana, Lori, Ana e Mulher sem Nome.
E Beth Goulart! Que maravilhoso vê-la atuar, dirigir e, com grata felicidade, ouví-la como sempre com magistral dicção e movimento corporal perfeitos e um canto primoroso. Atriz e personagem trazem ao público um resultado potente, transbordante de questionamentos, de filosofia, de poesia, mas sobretudo abordando o preenchimento de si mesma quando nada "parece" perfeito.
Clarice Lispector foi estudada em Universidades de Psicologia que a tratam como psicótica, mas o que isto importa quando essa figura se tornou uma das mais expoentes escritoras no Brasil a não ser a intensidade de como vivia e percebia a vida? Transformou seus fragmentos em histórias que, inclusive, foram vistas no Cinema. 
Do livro "Água Viva":
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada".
Em "A Descoberta do Mundo":
"E, se você me achar esquisita, respeite também.
Até eu fui obrigada a me respeitar".
A supervisão da atriz é  do mestre Amir Haddad. Esse mestre do Teatro universal  extrai o que está na simplicidade do essencial.
Cenário muito funcional que visa o vazio, mas cá para nós é de beleza incontestável assinado por Ronald Teixeira e Leobruno Gama.
Figurinos sofisticados e refinados de Beth Filipecki, completamente adequados para tantas trocas.
Iluminação perfeita de Maneco Quinderé, quantos aplausos cabem em cada foco de luz!
Direção de movimento, diga-se de passagem,  gestual com início, meio e fim  muito bem acabados da talentosa Márcia Rubin.
Trilha sonora original de Alfredo Sertã, inspirada em compositores como Erik Satie, Arvo Pärt e Astor Piazzolla.
A preparação vocal impressiona. A responsável por isso é Rose Gonçalves.
Beth Goulart se debruçou por 2 anos na obra de Clarice Lispector e com profunda identificação é responsável também pela adaptação.
Clarice disse certa vez que escrevia através de imagens porque estas são mais rápidas do que as palavras. No meu entender, esse pensamento traduz muitíssimo a literatura da autora.
O espetáculo ficará até dia 27 de abril no Teatro Prio, ali no Jockey, mas não fiquem tristes se não puderem ir até essa data, pois haverá uma nova temporada iniciando no dia 09 de maio, no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea.
Sobre o amor, termino aqui essa resenha:
"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil". Clarice sendo Clarice. Beth sendo Clarice e nós de pé aplaudindo ambas.





Serviço:
“Simplesmente eu, Clarice Lispector” @ Teatro I Love PRIO
Temporada: 14 de março a 27 de abril de 2025
Datas MARÇO: 21, 22 e 23 e 28, 29 e 30 de março | sexta a domingo
Datas ABRIL: 3 a 27 de abril | quinta a domingo
Dias: 3, 4, 5 e 6 – 10, 11, 12 e 13 – 17, 18, 19 e 20 – 24, 25, 26 e 27 de abril
Horários: quinta a sábado às 20h, domingos às 19h
Classificação: 12 anos
Duração: 60 minutos  
Capacidade: 352
 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Cinema Orly


Saí do espetáculo "Cinema Orly" e pensei:" Que porrada!". Sou hoje mais um alguém encarregada de reverberar as vozes que não foram ouvidas porque " O cinema Orly saiu do cinema Orly. O mundo é o cinema Orly". Duvidam? Vamos aos fatos.
O cinema Orly, cinema pornográfico localizado na Cinelândia, centro da cidade do Rio de Janeiro, frequentado por diversos gays, bissexuais, travestis, inclusive homens casados que, claro, não iam somente assistir uma sessão de cinema, foi também um reduto, um gueto no qual aquelas pessoas podiam viver suas experiências sexuais sem ser incomodadas pela polícia. No seio da sociedade não, lá fora eram logo enquadradas na contravenção penal de vadiagem, mas ali no cinema Orly ninguém as incomodava. O espetáculo não retrata somente o cinema Orly, hoje fechado, mas traz a importante discussão de um tema absolutamente atual, pois as pautas ultraconservadoras estão aí para retirar direitos e tornar uma parcela da sociedade sem voz. 

A ideia do espetáculo surgiu quando o ator Teo Pasquini encontrou o autor do livro Luís Capucho em uma festa e adquiriu deste um exemplar cuja edição já se encontrava esgotada. A dramaturgia foi feita por Gustavo Colombini que não se ateve tão-somente a potente descrição das experiências do autor, frequentador assíduo do Orly, mas pesquisou a época, a sociedade, a política, contextualizando o lugar, dando a importância histórica e libertária necessárias. O resultado é um texto forte, onde a sexualidade está envolta no poder de fala, poder de expressão e poesia.

Diogo Liberano pegou esse texto e dividiu o espectador, colocando alguns perto do ator, perto de seu corpo, de seus movimentos e outros atrás de uma cortina onde é possível só ouvi-lo como se estivessem diante de uma tela de cinema. O diretor propõe dois tipos de sensação ao espectador, uma plateia-corpo e uma plateia-projeção. A direção insere todos dentro do cinema através de marcações que evidenciam os encontros que lá se davam com o personagem principal ou quando nos deparamos com vários frequentadores interpretados pelo ator que ora rasteja como um réptil, roçando o ventre no solo, ora acaricia as poltronas do cinema como se fossem dorsos. A sexualidade, a sensualidade, a solidão são muito bem expostas pela excelente direção.

Teo Pasquini é um ator que não opta pelo lugar-comum, ao contrário, escolhe difíceis e brilhantes caminhos para seu personagem, a começar pela opção de fugir dos estereótipos, apresentando a mais profunda e dolorosa humanidade. Por isto, seu trabalho é tão rico, intenso na expressão corporal, calcado no texto, mas acima de tudo no subtexto construído pelo ator. É explícito sem precisar usar de qualquer gestual óbvio, ao contrário, sua interpretação é visceral, eloquente e poética. Uma interpretação profundamente sensível. Não é preciso ficar nu para se desnudar em cena. A palavra desnuda.

O desenho do espaço assinado por Diogo Liberano nos faz relembrar o que é o verdadeiro Teatro, pois faz uma sugestão, propõe a imaginação e isto é imprescindível. Os objetos cênicos a cargo dele e de Teo Pasquini guardam uma característica em comum, quase todos são fálicos como um desodorante, garrafas de água, lanterna, sapatos masculinos... 

O desenho de luz também de Diogo Liberano e Luiz Paulo Barreto contribui para a sensação de se estar no interior do cinema. Sempre optando pelo tênue.

Por fim, devemos ouvir, reeditar, reescrever, distribuir as vozes que não foram devidamente ouvidas. "Cinema Orly" é um espetáculo para todos e o livro será relançado pela editora Carambaia. Um verdadeiro grito de alerta.


Ficha técnica CINEMA ORLY

A partir do livro homônimo de Luís Capucho
Atuação: Teo Pasquini
Dramaturgia: Gustavo Colombini
Direção: Diogo Liberano
Direção Assistente: Marcela Andrade
Dramaturgismo: Suzana Velasco
Desenho do Espaço: Diogo Liberano
Roupas e Objetos: Diogo Liberano e Teo Pasquini
Desenho de Luz: Diogo Liberano e Luiz Paulo Barreto
Intervenção Sonora: Diogo Liberano e Gustavo Colombini
Preparação Vocal: Lucia Provenzano
Terapia Corporal: Andrêas Gatto
Operação de Luz e Som: Luiz Paulo Barreto
Ilustrações e Cenotécnica: Lucas Chetta
Design Gráfico: Marcio Andrade
Intérprete de LIBRAS: Alex Sandro Lins
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida – Racca Comunicação
Gerenciamento de Redes Sociais: Thaís Barros
Fotos de Divulgação: Thaís Grechi
Assessoria Jurídica: Clarisse Stephan
Captação de Apoios: Bruno Paiva e Danuza Formentini
Produção Executiva: Danuza Formentini
Direção de Produção: Danuza Formentini e Teo Pasquini
Idealização: Teo Pasquini 


Serviço
Temporada de estreia: 05 a 27 de outubro de 2023
Teatro Glaucio Gill: Praça Cardeal Arcoverde, s/nº – Copacabana, CEP: 22040-030, Rio de Janeiro/RJ Dias e horários: quintas e sextas, às 20h
Sessões acessíveis com tradução em LIBRAS: 20 e 27 de outubro, às 20h
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada)
Duração: 75 minutos
Lotação: 101 lugares, dos quais 24 lugares são “plateia-corpo” e 77 “plateia-projeção”
Classificação: 18 anos
Venda de ingressos: https://funarj.eleventickets.com/ Telefone da bilheteria: (21) 2332-7904

Segunda Temporada: 02 a 05 de novembro de 2023
Teatro Dulcina: Rua Alcindo Guanabara, 17 - Centro, Rio de Janeiro - RJ
Dias e horários: quinta e sexta, às 19h, sábado, às 15h e às 19h, e domingo, às 15h e 18h.
Sessões acessíveis com tradução em LIBRAS: 4 e 5 de novembro, sábado e domingo, às 15h
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada)
Duração: 75 minutos
Lotação: 101 lugares, dos quais 24 lugares são “plateia-corpo” e 77 “plateia-projeção”
Classificação: 18 anos
Venda de ingressos: https://www.sympla.com.br/

domingo, 3 de setembro de 2023

Antes Que Eu Me Esqueça

Foto: Victor Gustavo Almeida

Tony Bennett em seu show "One last time", em 2021, chamou Lady Gaga para dividir o palco em uma canção, porém o que ocorreu ali foi uma verdadeira lembrança do nome dela. Ela iria participar,  mas para ele, diagnosticado com Alzheimer, naquele pequeno instante, a memória foi épica.

Tony Bennett é mais uma pessoa, dentre milhares, que foi diagnosticada com Alzheimer. Seu vinil faz parte do cenário do espetáculo  "Antes Que Eu Me Esqueça". Com certeza, coisa de caso pensado. Há, sem dúvida,  um trabalho de pesquisa intenso que se traduz num texto que induz o espectador à reflexão da importância da memória na vida de cada um, da importância do não desperdício do tempo de lucidez, da possibilidade de se viver terrivelmente  sem identidade, sem autoreconhecimento. A orientação dramatúrgica, muito bem sucedida, é de Karen Acioly.

O texto de Mariana Pantaleão e Matheus Rodrigues apresenta um músico que sofre um acidente e é diagnosticado com Alzheimer. Primeiro, é importante destacar a escolha de um músico como personagem, já que todos sabemos que este tem como consequência de seu ofício desenvolver a matemática, bem como a contagem do tempo. A ausência de memória neste caso torna ainda mais instigante o desenrolar da trama.

Walter, um músico que vive solitariamente a progressão da doença nos ensina como "uma massa rosa de um quilo e meio" pode nos fazer tanta falta e causar tanta dor. O monólogo tem um início impactante, o personagem vai se perdendo ao longo de duas ou três frases repetidas à exaustão. Com o desenrolar da trama, percebe-se quem é aquela pessoa, seu passado, suas referências afetivas, sua luta diária para reforçar o que ainda lhe resta de memória, seja simplesmente a hora exata de tomar um remédio, seja um estímulo musical, sejam cartas lidas anos depois de terem sido enviadas. A dramaturgia envolve as reflexões do personagem em questionamentos diretos ao espectador. Por que só depois , no fim de tarde? Por que só começar a viver depois disso, após aquilo... Não há como deixar de ter com o espectador uma conversa ao pé do ouvido porque a maioria de nós faz exatamente isto. Ao contrário do que pode parecer, o texto não busca compadecimento, busca reflexão e  por isso talvez em muitas sequências o desenvolvimento é interrompido por outra nova proposta de reflexão.

A direção forte de Mariana Pantaleão juntamente com a interpretação do ator Renato Peres complementam o que pareceria algo puramente cerebral com muita emoção. A começar pela direção de ator, claramente há um trabalho intenso buscando extrair o cerne da questão, a memória. E neste aspecto, a diretora demonstra uma aptidão que resulta em cenas de intensa profundidade. Há uma proposta cênica muito bem elaborada, ora suave como nos instantes poéticos através da memória familiar do personagem bailando com um cabideiro, ora através da música que perpassa muitas cenas, mas também há a dureza da realidade desmemoriada desenvolvida através das projeções, inclusive da experiência sensorial provocada por "Um Cão Andaluz" , de Luis Buñuel, com roteiro compartilhado com Salvador Dalí, surgido através de sonhos de ambos. No texto há  uma fala dita pelo personagem do próprio Luis Buñuel: "É preciso perder a memória mesmo das pequenas coisas, para que percebamos que a memória faz a nossa vida. Vida sem memória não é vida (...). Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação. Sem ela somos nada (...) e só posso esperar pela amnésia final". – Citação de Buñuel pelo neurologista e escritor inglês Oliver Sacks.

A direção de Mariana Pantaleão não deixa em nenhum momento o ator sem chão como se vê em muitos monólogos. Há, inclusive, um cuidado na direção de movimento de Amanda Laversveiler. Há um arcabouço pensado para impactar, conduzir e tocar o espectador. O resultado não poderia ser melhor. Direção lindamente conduzida e, na prátinca, muito inspirada, inteligente e criativa.

Renato Peres é um ator versátil. A começar pela construção do personagem. Não houve a opção por um caminho fácil, o a comiseração. Houve sim o compromisso com a integridade de comunicar um tema tão delicado de maneira séria. Seu personagem atinge diretamente a plateia com sua atuação que busca profundamente a essência dos portadores de Alzheimer. Vê-se ali a confusão, o esquecimento, a agressividade, a negação, a dependência, a emoção brotando quando o personagem escuta um vinil herdado do pai. Esta interpretação mereceria mil palavras que expressassem a perfeita modulação da voz, o trabalho corporal, a incapacidade cada vez mais acentuada, no tempo certo, da ausência. Quem tem ou teve alguma pessoa conhecida com esta doença sabe muito bem identificar o passo a passo até o silêncio e isto o ator vai nos revelando ao longo do espetáculo de forma contundente. O ator encarna um personagem muito difícil esbanjando maturidade e talento. Walter, de Renato Peres, existe e vive agora no seio de muitas famílias. Esta interpretação é para ser vista e revista muitas vezes, pois possui muitas nuances.

O cenário de Lina Da Hora é perfeito porque contém todas as referências do personagem. Um cenário funcional e cativante. Vê-se ali memórias em forma de objetos. Objetos dos quais muitos espectadores também têm memória.

A iluminação de Anna Padilha ajuda demais a construir as cenas, digo, o âmago das cenas, suas essências.

A direção musical de Raphael Muniz consegue traduzir as memórias do personagem músico e apresenta uma trilha sonora original emocionante.

Por fim, vale destacar que estamos no mês da conscientização do Alzheimer. É importante e um alento saber que as pesquisas têm avançado. Quem dera tia Nana, tia Coca, tio Plácido estivessem no tempo de agora. Minhas tias e tio, Tony Bennett, alguns célebres pintores, Walter e tantos outros. Por isso, não deixe para depois o que pode fazer já, assista "Antes Que Eu Me Esqueça" o mais breve possível, um espetáculo necessário e profundamente solidário.

SERVIÇO

Local: Teatro Ruth de Souza (Centro Cultural Municipal Glória Maria, antigo Parque das Ruínas)

Endereço: Rua Murtinho Nobre, Nº 169 – Santa Teresa

Temporada: de 02 a 24 de setembro (sábados e domingos)

Horário: 15h

Ingressos: R$ 30 (Inteira) e R$ 15 (Meia-entrada)

Link para compra:  https://riocultura.eleventickets.com/#!/evento/47ebaaea82bd5d84c3eb217a4173493671e6ad9a

Duração: 60 minutos

Classificação: 12 anos (menores de 18 anos acompanhados de um responsável)

Gênero: Drama

Lotação: 75 lugares

sábado, 10 de junho de 2023

Ícaro And The Black Stars

Foto: Beá


Há espetáculos que perdemos por diversos motivos, mas que bom que retornam e temos a chance de ratificar todas as críticas de uma jornada de sucesso. Esse espetáculo já foi visto por mais de 60.000 pessoas e parafraseando nossa diva do rock, agora só falta você!
Então,  se por acaso você perdeu este espetáculo,  a boa notícia é que, como eu, terá a chance e o deleite de estar na plateia aplaudindo, rindo, compartilhando a energia envolvente, recheada de improvisos, mas com um alicerce potente.
Vamos por partes dar nome aos feitos. Pedro Brício imprime ao texto um lado bem-humorado e crítico  muito necessários. Vale lembrar que o espetáculo teve início em 2018 e continuou na pandemia, passando por todo o período nefasto do poder vigente à época. Então, sem dar spoiler, a viagem como ponto de partida para mostrar a Black Music, seus ícones,  sua representatividade é muito criativa e calcada em vasta pesquisa. Deve ter sido um trabalho árduo a escolha porque, todos sabemos, que neste universo há vasto mundo. A direção de Brício é um octopus, vários braços alcançam a plateia sem perder o ritmo. Há projeções, os músicos são precisos e bem integrados à DJ Tamy Reis conferindo uma sintonia de alta qualidade,  números de plateia, trocas de figurinos, velocidade a zilhões de anos luz.
Então, você se pergunta se é Teatro, se é show,  se é um misto de tudo junto e misturado. É isso mesmo, acertou. É tudo junto e misturado dando a liberdade para o espectador de cantar, de seguir o ritmo batendo as mãos. Você se sente absolutamente envolvido.
Ícaro Silva é daqueles artistas que aproveitou cada instante de aprendizado que a vida lhe ofereceu. Ele me lembrou uma frase dita pela tenista Bia Haddad a respeito da derrota na semifinal de Roland Garros. Ela disse algo como no tênis não haver derrota e sim vitória ou aprendizado. Nunca há perda. Ícaro demonstra que apesar de uma infância cheia de limitações, ele conseguiu aproveitar tudo o que a vida lhe trouxe, a começar pelo contato, ainda cedo, com a Black Music. Ele é completo. Está pronto para qualquer personagem, em qualquer contexto. Tem um pensamento ágil, improvisa com a maior facilidade, dança e canta maravilhosamente bem, é pulsante, entrega-se de corpo e alma. Foi um enorme prazer ver sua maturidade em cena. Acompanhado de mulheres extraordinárias  que são a Hananza e Joyce Cosmo. Impressionantes.
A direção musical de Alexandre Elias merece destaque. Para dizer em uma palavra, perfeita.
As coreografias de Victor Maia buscam as características de cada artista retratado e conseguem seu objetivo. Visualizamos cada movimento em máxima sintonia.
Os figurinos de Bruno Perlatto e Mariana Safadi são criativos e, ao mesmo tempo, leves e funcionais.
A iluminação de Paulo Cesar Medeiros nos transporta, atinge o clima necessário para cada performance.
Saí do espetáculo feliz porque vi profundidade nas críticas, beleza nos movimentos e no canto, envolvimento dos espectadores com os artistas. Enfim, digo a vocês, o espetáculo fica no Teatro João Caetano até 24 de junho. Não deixe escapar essa chance de se embebedar de felicidade.



Serviço Musical:

Ícaro And The Black Stars
Última temporada RJ: 08 a 24 de Junho de 2023.
Quintas, sextas e sábados, às 19 horas.
Teatro: João Caetano
Endereço: Praça Tiradentes s/n - Centro - Rio de Janeiro/RJ
Telefone: 2332-9257
Ingressos: R$ 60,00(inteira)  R$ 30,00(meia)
Vendas : na bilheteria do teatro e na ticketeira Eleven Tickets Imply
Classificação etária: 12 anos
Duração: 100 minutos





sexta-feira, 9 de dezembro de 2022



Existe dignidade na política ou há meandros sórdidos incapazes de serem superados? Trata-se de um tema universal que perpassa pelas democracias de todo o mundo e até mesmo presente em sua origem, em Atenas. Há teses que apontam que o próprio Sócrates era contra a democracia. O jornalista I.F.Stone ao escrever sobre o julgamento de Sócrates e sua condenação levanta a possibilidade da condenação ter se dado não só pelo convencimento de jovens das suas ideias, mas pelo filósofo ter se manifestado da seguinte forma:


“Acredito, e já o disse muitas vezes, que não deve o sapateiro ir além do sapato. Não creio em versatilidade. Recorro ao sapateiro quando quero sapatos e não ideias. Creio que o governo deve caber àqueles que sabem, e os outros devem, para seu próprio bem, seguir suas recomendações, tal como seguem as do médico." Claro que Sócrates se referia a conceder o leme àqueles que sabem navegar, segundo as pesquisas feitas por mais de 10 anos do autor do livro. Porém, que não se confunda que democracia e falta de dignidade na política são aliadas, ao contrário, é o que deve ser alijado.


Na obra do espanhol Ignasi Vidal nos deparamos com o questionamento sobre a dignidade na política, em um momento de extrema importância para nosso país, através de dois personagens que começaram juntos e dão sustentação a um grande partido político . Um deles, Francisco, lança-se na convenção do partido às eleições presidenciais como candidato da mudança, enquanto o outro, Alex, tem ambições de ser vice. Tudo parece, a princípio, uma reunião entre amigos no escritório do partido, mas se revelará aos poucos bem diferente de algo amistoso e, sem dar spoiler, o resultado caminha para um desfecho impactante e abjeto.


A tradução de Daniel Dias da Silva, exímio tradutor da língua espanhola, cria uma identificação imediata com o espectador. Vai conduzindo o texto original no tempo certo, dando ao espectador em pequenos goles a compreensão da dimensão do texto.


A direção também a cargo de Daniel Dias da Silva coloca um antagonismo na conduta dos personagens através de marcações contrapostas. Como num jogo, cada qual ocupando o espaço cênico diametralmente oposto ao do outro e isto confere ao embate uma linguagem simbólica entre o certo e o errado, mas sempre deixando uma nesga de dúvida até que ponto o valor, o merecimento, a elevação de fato existem naqueles personagens. O diretor propõe uma arena onde o espectador assiste pasmo aos "gladiadores". Direção primorosa e inventiva a todo instante, inclusive na solução dada à passagem de tempo.


Os atores Thelmo Fernandes e Claudio Gabriel, comemorando trinta anos de amizade com este espetáculo, expõem uma sintonia arrebatadora. Thelmo Fernandes interpreta Francisco a partir de sutilezas, de pequenos gestos, da voz mansa, porém em determinados momentos imperiosa, tudo no tempo certo de seu personagem. Ele traduz com perfeição o mistério que paira sob aquele encontro.
Claudio Gabriel, como Alex, possui uma inquietação, um ritmo acelerado interno através do tom de voz, dos gestos largos. O ator trabalha bem as fases do personagem, da aflição à ascensão, tudo com muita veracidade. Dois mestres na arte da interpretação. Vale destacar que os silêncios de cada um também são reveladores.


Quando o espectador ingressa na sala de espetáculo encontra um cenário enigmático, com casas de tabuleiro no chão e figuras geométricas que não se encaixam umas nas outras, mas que estão a querer mostrar que apesar de diferentes em cores e disposição no palco revelam sua igualdade. Este é o lindo trabalho de Natália Lana. A única ressalva diz respeito à altura das torres de pastas ou arquivos nas laterais, apenas porque em certos momentos atrapalham a visão do espectador. Mas, sem dúvida, o cenário é um dos pontos altos do espetáculo, bem como a iluminação enigmática de Vilmar Olos, trazendo clímax quando necessário.


A produção é impecável. Tudo de altíssima qualidade. Um espetáculo que nos faz refletir.


"Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são." (William Shakespeare). Simples assim.






Serviço:
Temporada: Até 18 de dezembro. Quinta-feira a domingo, às 20h.
Ingressos: R$ 7,50( Associado do Sesc ), R$ 15,00 ( meia-entrada ), R$ 30,00 (Inteira)
Local: Sesc Copacabana- Rua Domingos Ferreira, 160 - Copacabana
Informações: 2547-0156
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 90 minutos






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sábado, 22 de outubro de 2022

A Última Ata



Para bom entendedor um pingo é letra. Este dito popular retrata o que se extrai do cerne de "A Última Ata". Espetáculo que escancara os sórdidos políticos de uma cidadela estruturada em inverdades, apesar de ser um texto americano nos remete ao nosso querido Dias Gomes. Atemporal e, justo por isto, de fácil identificação , faz com que o espectador enxergue a cartilha da ganância, da corrupção, do massacre de um povo , de políticos mancomunados com o que há de pior no exercício do poder.
Somos transportados para Cerejeiras, uma cidade em que seus vereadores têm aversão às necessidades dos mais vulneráveis e são confrontados por outro vereador, recém chegado, fazendo com que toda a maracutaia que os envolve venha à tona.

O texto de Tracy Letts, originalmente "The minutes", foi indicado ao Tony Awards como melhor peça inédita montada na Broadway. O autor, que também é ator, é responsável por outro texto conhecido, "Agosto" que no cinema recebeu o nome de "Álbum de Família", interpretado por Meryl Streep, Julia Roberts e Sam Shepard.

Coube à iniciativa de José Pedro Peter traduzir, adaptar, assinar a produção artística e nos agraciar com este belo espetáculo, " A Última Ata". Sabemos que este esforço, em um período em que não há apoio governamental e fomento à cultura é admirável e merece muitos aplausos.

A direção é um capítulo à parte nesta tão bem sucedida empreitada. Na montagem brasileira a camara dos vereadores, em razão de forte chuva, foi interditada e toda a ação se passa no Teatro Municipal. Há aqui um passeio pela metalinguagem , o Teatro dentro do Teatro e a "encenação" ou farsa dos vereadores dentro da cena teatral. Uma sacada genial porque nada mais teatral, entre aspas, do que a atitude destes vermes políticos, como temos tido vários exemplos no cenário nacional. Além disso, a direção coloca todos os atores no mesmo tempo e espaço atuando sem parar em incontáveis minúcias. A vida como ela é. Sem tirar nem pôr. Há nuances em cada personagem para quem o espectador volte seu olhar. Isto confere uma dinâmica impressionante. Todos são participativos e atuantes "full time". Victor Garcia Peralta é um diretor criativo, profundo e sabe trabalhar seus atores. É daqueles diretores que dispensa toda a atenção ao trabalho do ator e, com isso, consegue extrair uma veracidade ímpar de cada um.

No elenco estão Alexandre Dantas, Alexandre Varella, Analu Prestes, Ary Coslov, Debora Figueiredo, Dedina Bernardelli, Leonardo Netto, Marcelo Aquino, Mario Borges, Roberto Frota e Thiago Justino.
Difícil falar da atuação de cada ator. Todos excelentes. Todos com suas bases no Teatro. 
Todos brilham, cada um em seu momento. Gostaria de destacar o elenco feminino com a atuação sempre impressionante de Analu Prestes como uma das vereadoras mais antigas e conservadoras, verbalizando com toda convicção absurdos. Dedina Bernadelli interpretando perfeitamente a servidora pública que honra sua função e Debora Figueiredo que traz o humor necessário ao espetáculo através de uma personagem à beira de um ataque de nervos. Gostaria igualmente de destacar o excepcional trabalho de dois grandes atores, Mario Borges e Ary Coslov, responsáveis pela condução e revolução do espetáculo, além de Alexandre Varella que confere humanidade ao seu personagem, o vereador questionador Amadeu.
 
Na parte técnica, destaco a sonoplastia de Andrėa Zeni que dá um colorido às cenas fazendo uma leitura perfeita. O cenário de Julia Deccache, os figurinos de Tiago Ribeiro e a iluminação de Ana Luzia de Simoni são bem adequados.

Não deixem de assistir "A Última Ata ". Estamos urgentemente precisando enxergar os meandros nefastos da política sem escrúpulos.


Serviço:

Teatro das Artes - Rua Marquês de São Vicente, 52 - Shopping da Gávea, segundo piso - Loja 264 - Gávea Telefone: 2540-6004
Temporada: até 13 de novembro. Sextas e sábados, às 21h e domingos, às 20h
Ingressos: Sexta( R$ 80,00) / Sábado e Domingo ( R$ 90,00 )
Duração: 90 minutos
Classificação indicativa: 12 anos




quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Baile Partimcundum

Assistir ao infantojuvenil "Baile Partimcundum" é  desde logo perceber que o espetáculo tem muito o que dizer. É robusto no conteúdo e na forma, levando o espectador a despertar em si mesmo o lúdico atual, ou seja, o lúdico com mensagens que servem a todas as pessoas neste universo em que vivemos , sem com isso deixar de ser atemporal.


Inspirado nas canções do disco "Partimpim 2", de Adriana Calcanhotto, e dando continuidade ao primeiro espetáculo "Lá Dentro Tem Coisa” (2017), idealizado pelo ator e empreendedor cultural Felipe Heráclito Lima, a menina Isabel agora tem 12 anos , ama os livros, tem duas mães e se apaixona pelo personagem do livro, o príncipe preto Alexandre, que está para ser coroado em seu reino. Só por aí já se vê um espetáculo diferenciado e tão necessário no contexto de aversões e desrespeito às diferenças em que o nosso país foi imerso.


A dramaturgia é de Adriana Falcão e  Matheus Torreão. O amor pelos livros faz com que a menina Isabel entre na história com o intuito de encontrar o príncipe Alexandre que havia desaparecido com a suspeita de ter sido raptado pelo Leão. O reino tem personagens adoráveis  como o menestrel, que os editores o transformam em narrador, mas que é muito mais que isso, Aristocrates ,o fiel escudeiro do príncipe, que na verdade é  um sábio cavalo, a duquesa Alface, o Leão,  o príncipe Alexandre cujo pai foi um raio, mas que é inseguro e misterioso, isto sem falar em Isabel uma menina cheia de vida e posicionamento firme, uma personagem que ilumina tudo por onde passa, deixando preocupadas suas mães. A linguagem do texto utiliza a rima de maneira engraçada no menestrel e os diálogos entre os demais personagens são construtivos e criativos. Um texto delicioso, que desperta interesse do início ao fim.


A direção de Renato Linhares está toda calcada no livro que a menina lê  e as soluções cênicas são mágicas. O espectador é levado a se transportar de fora para dentro da história, contada de forma a valorizar a literatura e a imaginação. Há uma  comunhão com  a direção audiovisual de Murilo Alvesso executada com maestria. O espectador passeia por cenários diversos, até mesmo no fundo do poço. A ideia de uma brecha no livro que faz a menina ingressar nele e todos nós é genial porque não serve somente a isto, mas principalmente pela mensagem subliminar que traz. A direção é responsável por momentos memoráveis.


O elenco de atores-cantores composto por Caju Bezerra, Felipe Rocha, Léo Bahia, Lu Vieira, Thaís Belchior e Thiago Catarino está bem entrosado e maravilhoso! Cantam, dançam,  tocam instrumentos, tendo uma base por trás, interpretam com muita naturalidade e dão vida aos personagens de tal forma apropriados que até mesmo após o espetáculo muitas cenas de cada um deles ficam saltando na memória. Todos se destacam, cada um tem aquela cena inesquecível,  não há como deixar de apontar a excelência do elenco.


O cenário assinado por Bia Junqueira é deslumbrante e todo ele feito com diversos tipos de papel. Aqui, mais uma vez, nota-se a valorização à literatura. Como disse anteriormente,  há diversos cenários e todos muito bem elaborados, criativos e funcionais. 


O figurino de Karen Brusttolin aposta no surrealismo e são originais de roupas usadas por personagens do cinema das décadas de 60 a 80. Extremamente impactantes, coloridos e vibrantes.


A iluminação de Bernardo Lorga faz toda a diferença. Funciona quase como um personagem a mais tão casada está com as cenas, dando o clima perfeito ao acabamento destas.


A preciosa direção musical é de Felipe Habib e Maíra Freitas. As músicas "Alexandre”, “Ringtone de amor”, “Alface”, “O homem deu nome a todos os animais”, “Menina, menino”, “O trenzinho do caipira” e “Baile Partimcundum”  dispensam  comentários , têm  letras e arranjos contagiantes e festivos.


O Teatro precisou se adaptar a outras linguagens e aqui houve um casamento perfeito com o audiovisual. É o Teatro encenado, mas transposto pela câmera,  inclusive com efeitos de edição. Um trabalho meticuloso em todos os elementos e necessário por dizer a que veio. Um espetáculo para ser visto e revisto muitas vezes, como fazemos com aqueles livros que adoramos.


SERVIÇO

Espetáculo on-line: “Baile Partimcundum”.

Temporada: De 02/10 a 28/11. Dias e horários: Sábados e domingos, às 17h.

Local: Exibição via plataforma Sympla

Ingressos: Sympla – R$ 20 (inteira) | R$ 10 (meia) – www.sympla.com.br/produtor/sevenxproduesartsticas

Duração: 60 min. Classificação: Livre. Gênero: musical infantojuvenil.

 


 





segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A Menina Akili E Seu Tambor Falante, O Musical

A mãe África e toda a contribuição que deu ao resto do mundo através da música, da dança, da força contida na religiosidade, além da resistência de seu povo aos maus tratos recebidos é fonte inesgotável de inspiração.

O espetáculo através de uma menina e seu tambor falante, traz de maneira leve e divertida valores como o respeito à ancestralidade e acentua o empoderamento tão necessário. A título de curiosidade, estudos indicam que o homem, em sua origem, pela região em que habitava era preto, todos eram pretos e somente através das migrações e condições climáticas diversas foram embranquecendo, então partindo deste princípio, a origem de todos os povos é preta.


“A menina Akili e seu tambor falante, o musical”, roteirizado e protagonizado pela atriz Verônica Bonfim, tem direção de Rodrigo França e Valéria Monã na co-direção.


O texto, extraído do livro homônimo lançado em 2016 pela Editora Nandyala Livros, apresenta-nos Akili, uma criança que no dia de seu aniversário se deparou com a missão de se tornar Griote, uma contadora de histórias, guardiã da tradição oral do seu povo e juntamente com seu tambor falante Aláfia, vive aventuras até chegar ao que procura. O texto é rico em referências africanas, revelando uma cultura formada por extrema musicalidade, pluralidade e religiosidade. Um texto que desperta interesse em cada passagem, muito bem construído, com uma linguagem que atinge o coração das crianças e também de adultos. O tambor Aláfia, tocado por uma mulher, pontua a partida e a chegada da trajetória da menina e simboliza a vontade da mulher de estar onde bem quiser, inclusive tocando tambor.


A direção optou por colocar aparentes as instrumentistas, que também interpretam, em cena. A concepção é muito clara dada a importância delas para o desenvolvimento do espetáculo , mas por outro lado, em relação às cenas da menina Akili há pouco espaço no palco. A direção traz marcas criativas, explorando a expressão corporal, bem como criando as atmosferas adequadas.


As músicas são solares como é a própria menina. Excelente a direção musical de Cláudia Elizeu e co-direção do Grupo Dembaia. Há referências da capoeira, do maracatu, instrumentos como o pau de chuva, tambor, pandeiro, tudo harmonioso e envolvente.


A interpretação de Verônica Bonfim é cheia de vida, é carismática, sua Akili é uma criança encantadora, alegre, brilhante. Ótima atuação que opta por buscar o interior da personagem e não fazer uma construção de fora para dentro o que poderia acarretar um estereótipo, mas ao contrário, a atriz concebeu sua personagem conferindo qualidade vocal, corporal e emocional. Um trabalho admirável. É importante o destaque para a personagem aranha, com humor e expressão corporal perfeita, a atuação é um ponto positivo do espetáculo.


A iluminação do meio para o fim do espetáculo traz as cores necessárias à riqueza da história. Através dela poderia ter sido resolvida a questão do pouco espaço às cenas no palco.


O espetáculo cabe no coração de todos, pois aquece a cada um de nós, devolvendo o brilho da vida através da pureza e calor humano.

SERVIÇO:

ESTREIA

Local: https://www.youtube.com/c/OiFuturo

Data: 16 de outubro, sábado

Hora: 16h



TEMPORADA ONLINE

O espetáculo será exibido no Centro Cultural Oi Futuro e no Youtube do Oi Futuro

Data: 17 de outubro a 21 de novembro, sábado e domingo



Oi Futuro – Rua Dois de Dezembro, 63 - Flamengo

Hora: 14h e 16h

Agendamento: https://oifuturo.org.br/



Youtube Oi Futuro - https://www.youtube.com/c/OiFuturo

Hora: 16h

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Era Medeia

 


Repugnante e excepcional ao expressar o desmerecimento, o desapreço, a menos valia pela condição feminina.

Vi o espetáculo on-line, justamente, na semana em que o governo desconsiderando a fragilidade das mais carentes em relação aos absorventes femininos vetou este item absolutamente necessário para a vida de muitas mulheres. Sem comentários.

"Era Medeia" retrata um processo de ensaio, expresso via live, do espetáculo Medeia, de Eurípedes.

Original em todos os aspectos por trazer para o público o processo do ator, a intermediação do diretor e a live, muito vivida nesses dias pandêmicos. Até aí tudo parece bem natural, mas há cavernas a serem exploradas nessa tríade.

A personagem da atriz, ex-esposa do personagem diretor que a abusa emocionalmente, traz seu domínio pela condição que ocupa como homem. Não é à toa que as mulheres estão exaltando o empoderamento feminino, abusadas milenarmente quem sabe está mais do que na hora de falarem tetê-à-tetê?

Começa o espetáculo com a atriz Isabelle Nassar afundada em sua própria roupa, quase enterrada. Ótimo e diz muito o figurino de Tiago Ribeiro. Depois o que se vê é o ex-marido e diretor do espetáculo a expondo a situações quase cruéis e desmoralizantes. Até o ponto de propor que joguem bolas quando não satisfeitos com o desempenho da atriz.

Medeia, a tragédia encenada, traída e abandonada por seu grande amor Jasão é um ícone, ainda que cruel e devastadora. Essa mulher, através dessa traição matou os filhos e deu de comer a seu ex-esposo. Nada há de mais desumano nessa conduta, mas a personagem atrai porque não deu causa à tragédia e como diz o texto::" Sabem os deuses quem foi o primeiro ator desse desastre".

O texto, direção e atuação de Eduardo Hoffmann, com supervisão de Cesar Augusto, é uma crítica à condição feminina imposta pelo patriarcado. Afinal, por que os homens se sentem tão superiores? A força, vide Golias, não é a maior das virtudes. Além do mais, o texto faz uma crítica à adoração pelo reality show. Por que se adora um programa que se diz reality e não mais um verdadeiro processo da arte? A verdadeira experiência se encontra no processo de criação como era sabido e hoje esquecido.

A direção coloca a figura masculina em primeiro plano, tendo a atriz sempre atrás e, muitas vezes, desfocada, para acentuar o referido domínio. Muito pertinente e clara a mensagem.

Vale muito a pena destacar a interpretação dos atores. Isabelle Nassar inteira na atuação, desde o início, tem a personagem nas mãos. Atua com sua voz no início baixa propositadamente e vai a elevando até o ponto do xeque mate. Em suas entonações não se vê o óbvio. Seus arroubos tão esperados calam fortes, tais como:

"Duvido que você faça com um homem, levaria um murro na cara."

"Cala a boca! Isso é desrespeito".

Uma interpretação estudada, aprimorada e convertida em belas sequências. O seu par, o ator Eduardo Hoffmann consegue imprimir muita veracidade ao personagem. Quanto detestamos esse ser desprezível que ele representa. Sua falta de sensibilidade que disfarça suas mágoas é bem expressa. Os atores são muito responsáveis pelo grande espetáculo.

Iluminação pungente de Renato Machado.

A atmosfera musical de João Mello e Gabriel Reis acrescenta muito ao espetáculo.

Era Medeia é imperdível. Você vai se ver ali. Tudo feito com esmero e perfeição. Se jogue nesta viagem da Grécia antiga aos tempos nefastos atuais.

 

Serviço:

Era Medeia

Até 18 de outubro

No canal do YouTube Firjan Sesi

Pode ser acessado a qualquer hora.

 

domingo, 3 de outubro de 2021

Gaivotas

 

Assistindo "Gaivotas" é quase impossível não nos remeter à influência de  Eugène Ionesco na obra do autor Matéi Visniec. Disse ele certa vez:

“Depois de ler as peças de Ionesco, nunca mais tive medo na vida. Mais do que qualquer sistema filosófico ou livro de sabedoria, foi Ionesco que me ajudou a compreender o homem e suas contradições, a alma humana, a vida e o mundo”. A solidão dos personagens, a quase não existência, quase transformados em bonecos do cotidiano expressam a insignificância humana bem presentes no Teatro de Ionesco. É bom destacar que a adaptação de Fernando Philbert nos reflete e nos faz pensar, pois já estamos em completo absurdo na própria vida real.

 

"Gaivotas", texto de Matéi Visniec que, fugindo da ditadura de Ceausescu na Romênia se refugiou na França, mostra esta solidão. Os personagens buscando o amor só encontram barreiras criadas por si mesmos ou pelas situações de vida. Dois escritores e uma atriz, sem plateia, numa realidade coberta de gelo, metáfora muito pertinente, nada mais produzem, sem espectadores, num triângulo amoroso com um desfecho inesperado.

 

A adaptação de Fernando Philbert introduz a realidade pandêmica de teatros fechando, da ausência de público, da realidade nua e crua que o autor sempre esboçou em seus questionamentos sobre o fim do Teatro. O teatro um dia deixará de existir? Não creio.

 

O texto, inspirado em "A Gaivota" de Thekhov, retrata os conflitos das relações  estabelecidas entre Konstantin, um escritor fracassado e seu amor pela atriz Nina que fora casada  com outro homem chamado Boris. Este, por sua vez, teve um relacionamento com a mãe de Konstantin.  Esse reencontro dos personagens, após 15 anos, proposto por Visniec, expõe ódios, frustrações, solidão daquelas de tremer todo o corpo envolto em gelo, literalmente, porém com uma mensagem de esperança.

A adaptação coloca o espectador bem próximo aos personagens, pois mescla seus rumos com a situação atual.

 

A direção de Fernando Philbert de teatro-metragem tem a linguagem adequada ao vídeo,  há o plano geral, mas também há o ponto de vista do ator através da câmera subjetiva , além de justaposições, tornando dinâmico o espetáculo, explorando as tensões , trazendo belas imagens.

 

No que concerne aos atores, é importante destacar o trabalho de Paulo Giardini, interpretando Boris. Há nuances e coloridos em seu texto, bem como na composição do personagem. Sua entrada traz uma mudança necessária ao desenvolvimento da trama. A atriz e produtora Bibiana Rozenbaum tem um desempenho emocional, conferindo extrema verdade à sua personagem Nina. A cena em que pisa no palco, um simples pano branco representando o Teatro, é um ponto alto. O desempenho do ator que faz Konstantin, Savio Moll, começa em alto nível e, por isso mesmo, incompreensível seu desenrolar tão pouco carismático. O desempenho do ator se torna ao longo do espetáculo, para o espectador, frio e distanciado.

 

O cenário de Natália Lana é perfeito. Em meio a tanto gelo criado de forma muito criativa há cadeiras de uma plateia muito reais. Esse detalhe torna tudo muito mais próximo do espectador brasileiro. A plateia com suas cadeiras  daquelas de madeira, antigas, trazem um recorte do que vivemos antes de tudo, antes do nada.

 

O figurino de Marieta Spada com fidelidade nos transporta aos personagens daquele tempo e lugar.

 

A música original de Marcelo Alonso Neves é envolvente e acentua todas as atmosferas.

 

Recomendo o espetáculo por acreditar que nos faz pensar no tempo presente. O Teatro tem o dom de nos espelhar. Alguns percebem, outros não, mas estamos ali naquelas gaivotas que não conseguem, por enquanto, alçar voos.

 

Serviço:

Sexta a domingo até  10 de outubro, às 20h.

YouTube  Sesc- RJ