domingo, 1 de dezembro de 2019

Nastácia


A experiência de ser espectador de Nastácia, peça-instalação em cartaz no CCBB, remete a sensações tão distintas quanto o caráter dos personagens. A incredulidade, a revolta, o humor cáustico, o lamento são alguns dos muitos estados de espírito que a plateia vivencia.

Livremente inspirada em "O Idiota" de Fiódor Dostoiévski, a adaptação pinça a personagem heroína Nastácia Filíppovna como ponto central de uma trama que apesar de ter sido escrita no século XIX é atualíssima. Nastácia, após uma infância trágica em que se viu órfã e após ter sido apadrinhada por Tótski sofreu abusos e foi mantida prisioneira durante nove anos. No dia do seu aniversário ocorre um verdadeiro leilão para que ela se case, porém Nastácia vira a mesa em busca da sua dignidade e expõe a vilania de todos os presentes: Tótski o abusador, Gánia um pretendente debochado e covarde, interessado apenas em seu dote. Nastácia enfrenta todos como único meio de lidar com a desonra que sente e a busca pela vingança por tantos maus tratos. O único personagem que a vê sem críticas é um homem humanista e de extrema pureza, o príncipe Míchkin.

A dramaturgia irretocável de Pedro Bricio é plenamente certeira ao trazer as características dos personagens com tantos detalhes, mas com a surpreendente referência à ambientação em São Petersburgo e no Rio de Janeiro de 2019, pois em relação à violência contra a mulher nada mudou. Com ousadia e profundo domínio da obra, o texto coloca os espectadores como convidados da festa de aniversário e, com isso, logo somos arrebatados para aquele contexto.

Criativa, dinâmica, construindo e desfazendo atmosferas, a direção de Miwa Yanagizawa é um dos pontos altos do espetáculo. O ritmo que a direção imprime é um dos fatores fundamentais para manter sempre o interesse da plateia. As soluções cênicas são muito inspiradas e potentes. Apenas a título de aguçar a curiosidade do público que irá assistir, a última cena apesar de amplamente citada é surpreendente e o espetáculo se encerra em alto estilo. Vale também a pena destacar o trabalho da direção na preparação dos atores, pois todos atuam em altíssimo nível.

No elenco, Flávia Pyramo, idealizadora do projeto, tem a personagem nas mãos. Interpretar uma personagem trágica exige um tom a mais do que o comum, por isso se faz necessária muita veracidade. Perfeita em suas transformações, alcança todas as nuances. Sua personagem conduz as mudanças no contexto das cenas. Responsabilidade que a atriz desempenha com maestria. Sua Nastácia é forte, frenética, profunda, sofrida e complexa.
Júlio Adrião conduz Tótski apresentando sua tirania com desdém de quem se sente acima do bem e do mal e sem culpa. O ator traduz muito bem esse homem desprezível.
Odilon Esteves com seu personagem patético Gánia, alguém que mais se assemelha a um rato, atua com tanto carisma que as cenas com humor vêm de seu desempenho.

Há muitos destaques impecáveis, tais como a iluminação de Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal que apresentam as atmosferas obscuras e trágicas daquela noite, a direção de arte de Ronaldo Fraga com a instalação repleta de molduras vazadas e figurinos, que são por si só quase que os próprios personagens, a trilha sonora de Gabriel Lisboa pontuando todos os climas com exatidão. Tudo em uníssono com a grandeza da encenação. Isso sem falar na contribuição muito adequada da videoarte do cineasta Cao Guimarães.

Nastácia é merecedor da sua presença e de novas temporadas. Merece prêmios e reflexão. Profunda reflexão, pois sempre caberá repúdio à coisificação da mulher. Num contexto de falta de humanidade, cabe o dito por Dostoiévski:" Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas."





Local : CCBB -   Teatro III
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
Telefone - 3808-2020
Quarta a domingo, às 19h30
Temporada: 23/10 a 22/12
Classificação: 16 anos
Ingressos: R$ 30,00 ( inteira ) e R$ 15,00 ( Meia )
Gênero : Drama
Duração: 100 minutos



Nenhum comentário:

Postar um comentário