A experiência de ser espectador de Nastácia,
peça-instalação em cartaz no CCBB, remete a sensações tão distintas quanto o
caráter dos personagens. A incredulidade, a revolta, o humor cáustico, o
lamento são alguns dos muitos estados de espírito que a plateia vivencia.
Livremente inspirada em "O Idiota" de Fiódor
Dostoiévski, a adaptação pinça a personagem heroína Nastácia Filíppovna como
ponto central de uma trama que apesar de ter sido escrita no século XIX é atualíssima.
Nastácia, após uma infância trágica em que se viu órfã e após ter sido
apadrinhada por Tótski sofreu abusos e foi mantida prisioneira durante nove
anos. No dia do seu aniversário ocorre um verdadeiro leilão para que ela se
case, porém Nastácia vira a mesa em busca da sua dignidade e expõe a vilania de
todos os presentes: Tótski o abusador, Gánia um pretendente debochado e
covarde, interessado apenas em seu dote. Nastácia enfrenta todos como único
meio de lidar com a desonra que sente e a busca pela vingança por tantos maus
tratos. O único personagem que a vê sem críticas é um homem humanista e de
extrema pureza, o príncipe Míchkin.
A dramaturgia irretocável de Pedro Bricio é plenamente
certeira ao trazer as características dos personagens com tantos detalhes, mas
com a surpreendente referência à ambientação em São Petersburgo e no Rio de
Janeiro de 2019, pois em relação à violência contra a mulher nada mudou. Com
ousadia e profundo domínio da obra, o texto coloca os espectadores como
convidados da festa de aniversário e, com isso, logo somos arrebatados para
aquele contexto.
Criativa, dinâmica, construindo e desfazendo
atmosferas, a direção de Miwa Yanagizawa é um dos pontos altos do espetáculo. O
ritmo que a direção imprime é um dos fatores fundamentais para manter sempre o
interesse da plateia. As soluções cênicas são muito inspiradas e potentes.
Apenas a título de aguçar a curiosidade do público que irá assistir, a última
cena apesar de amplamente citada é surpreendente e o espetáculo se encerra em
alto estilo. Vale também a pena destacar o trabalho da direção na preparação
dos atores, pois todos atuam em altíssimo nível.
No elenco, Flávia Pyramo, idealizadora do projeto, tem
a personagem nas mãos. Interpretar uma personagem trágica exige um tom a mais
do que o comum, por isso se faz necessária muita veracidade. Perfeita em suas
transformações, alcança todas as nuances. Sua personagem conduz as mudanças no
contexto das cenas. Responsabilidade que a atriz desempenha com maestria. Sua
Nastácia é forte, frenética, profunda, sofrida e complexa.
Júlio Adrião conduz Tótski apresentando sua tirania
com desdém de quem se sente acima do bem e do mal e sem culpa. O ator traduz
muito bem esse homem desprezível.
Odilon Esteves com seu personagem patético Gánia,
alguém que mais se assemelha a um rato, atua com tanto carisma que as cenas com
humor vêm de seu desempenho.
Há muitos destaques impecáveis, tais como a iluminação
de Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal que apresentam as atmosferas obscuras e
trágicas daquela noite, a direção de arte de Ronaldo Fraga com a instalação
repleta de molduras vazadas e figurinos, que são por si só quase que os
próprios personagens, a trilha sonora de Gabriel Lisboa pontuando todos os
climas com exatidão. Tudo em uníssono com a grandeza da encenação. Isso sem
falar na contribuição muito adequada da videoarte do cineasta Cao Guimarães.
Nastácia é merecedor da sua presença e de novas
temporadas. Merece prêmios e reflexão. Profunda reflexão, pois sempre caberá
repúdio à coisificação da mulher. Num contexto de falta de humanidade, cabe o
dito por Dostoiévski:" Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das
feras, mas isso é injuriar estas últimas."
Local : CCBB - Teatro III
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
Telefone - 3808-2020
Quarta a domingo, às 19h30
Temporada: 23/10 a 22/12
Classificação: 16 anos
Ingressos: R$ 30,00 ( inteira ) e R$ 15,00 ( Meia )
Gênero : Drama
Duração: 100 minutos
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